"Juiz não pode decidir completamente fora do que está posto no texto normativo"

Instrumentos que não existiam 30 anos atrás hoje permitem que o juiz atue de maneira muito ativa. Porém, o julgador que se entusiasmar demais com o poder da sua caneta vai extrapolar os limites de sua função e acabará tentando substituir o legislador, alerta Luiz Périssé, presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP).

"Isso, porém, não pode acontecer. O juiz não pode decidir completamente fora do que está posto no texto normativo. O que quero dizer é: o juiz deve saber fazer o trabalho de extração da norma a partir do texto, com responsabilidade e proveito", diz em entrevista à ConJur.

No entanto, segundo ele, o Judiciário brasileiro tem a postura de não se deixar influenciar demasiadamente pela opinião pública. "Claro que há casos extremos, a televisão diante da sala de julgamento tem uma certa influência, mas acho que não é grande problema."

O maior problema da Justiça nacional, diz, é a máquina sobrecarregada. Os planos econômicos das décadas de 1980 e 1990 provocaram tal instabilidade na sociedade que judicializaram temas que não deveriam chegar aos tribunais. E a promulgação da Constituição Federal de 1988, acrescenta, também criou "novas frentes de acesso à Justiça e de chamamento ao Judiciário". "Criou-se um fluxo de ações maior do que a máquina tinha capacidade para gerir e acompanhar. A ideia do dano moral foi uma 'febre' no começo, todos queriam cobrar dano moral por qualquer coisa."

Aos 63 anos, com 40 de atuação profissional, Luiz Périssé Duarte Júnior está no final do seu mandato como presidente da AASP, instituição na qual ocupa cargos diretivos desde 2011, tendo sido tesoureiro, secretário, diretor adjunto e vice-presidente.

Leia a entrevista:

ConJur — Qual a sua opinião sobre a discussão de que juízes estão interpretando as normas?
Luiz Périssé — Hoje há instrumentos que não existiam 30 anos atrás e que permitem que o juiz atue de maneira muito ativa. O que está escrito na lei é o princípio da formação da norma, mas a norma nasce da interpretação do que está escrito, e quem faz a interpretação é o juiz, claro. Os advogados e o Ministério Público participam dessa atividade com seus intuitos, mas a interpretação final quem vai dar é alguém do Poder Judiciário. Com isso, o juiz é o verdadeiro legislador e ele tem limitações, não podendo ignorar o texto normativo. Não sou um grande entusiasta dessa linha levada a extremos, mas admito que a norma não é o artigo de lei. Às vezes, no mesmo artigo você encontra mais de uma norma e pode precisar de mais um artigo de lei para formar a norma. Há doutrinadores e escritores que exercem uma grande influência e que estabelecem linhas de interpretação e há também advogados que com sua atuação conseguem mostrar aspectos muito importantes nessa atividade, mas na prática quem vai bater, vai pingar o ponto final, é a sentença, é o acórdão, é o Judiciário.

ConJur — Isso é positivo?
Luiz Périssé — É muito positivo se houver prudência e compreensão do papel do juiz. O que quero dizer é: o juiz deve saber fazer o trabalho de extração da norma a partir do texto, com responsabilidade e proveito. O juiz que se entusiasmar demais com o poder da sua caneta vai extrapolar os limites de sua função e acabará tentando substituir o legislador. Isso, porém, não pode acontecer. O juiz não pode decidir completamente fora do que está posto no texto normativo.

ConJur — O que o senhor acha da TV Justiça?
Luiz Périssé — A TV Justiça é uma faca de dois gumes. Dizia um velho ministro da Suprema Corte americana, Louis Brandeis, que o melhor desinfetante é a luz do sol. Em um certo sentido é muito bom porque dá para ter uma ideia de como é o trâmite e como é que são as pessoas. Eu sempre digo para os colegas que o juiz não é uma entidade ideal, é preciso conhecê-lo e saber que ele tem um modo de ser. Por outro lado, o excesso de exposição, às vezes, leva a um protagonismo indesejado, por exemplo, os votos ficam muito longos e há uma certa vontade de mostrar sua capacidade. É difícil refluir agora que está feito, embora haja projetos de lei e até há proposta dentro dos tribunais para modificar isso. A adoração por julgamentos vem dos americanos, que lançam inúmeros filmes no cenário da corte de Justiça. Isso não é muito nossa tendência, tanto que temos uma ideia do processo muito mais pelo que vemos no cinema do que pela realidade dos nossos tribunais aqui.

ConJur — Os americanos são bem mais restritivos com a exposição dos tribunais.
Luiz Périssé — Apesar desse amor pelo drama judiciário, eles são muito mais restritivos em relação a isso. A Suprema Corte tem um papel importantíssimo no sistema político, mas é impensável transmitir ao vivo as sessões e também não entram câmeras. Falando da Suprema Corte americana e da brasileira, o sistema de formação da decisão lá é diferente. Aqui tudo se passa numa sessão só, enquanto lá os casos que são aceitos são muito poucos, há um filtro muito mais estreito e severo do que aqui. Eles julgam de 100 a 150 casos por ano, porque os casos têm uma enorme influência no direito legislado também, ou seja, na definição do que é a norma jurídica lá.

A Suprema Corte não é apenas um tribunal de Justiça, é um tribunal para definir as questões jurídicas. Lá, o sistema do direito é consuetudinário, o direito das decisões judiciais. O processo de decisão é muito elaborado, mas não é inculto. O voto é discutido por meses, e é feita uma negociação aberta mesmo entre os pares. É uma maneira de formar um consenso porque aquilo vai servir como precedente obrigatório para muitas decisões das cortes inferiores. É também muito restrito, há poucos casos para dar tempo de fazer o processo com essa qualidade de formação de uma decisão e nada disso é na televisão. Além disso, ninguém pensa em procurar um juiz para dizer, 'caso tal é importante você ver'. Eles têm um esplêndido isolamento e decidem sem influências externas, é muito diferente do nosso sistema.

ConJur — Os juízes brasileiros são influenciados pela opinião pública?
Luiz Périssé — Não sei exatamente como se sente um juiz que está julgando um caso de grande repercussão, mas imagino, claro, que algum influxo de opinião pública ele vai sofrer, é natural. Eles são treinados para distinguir a opinião pública do seu dever, da força da opinião pública com a força da obrigação que ele tem de decidir aquele caso conforme certos princípios e regras. O Judiciário brasileiro tem a postura de não se deixar influenciar demasiadamente pela opinião pública. Claro que há casos extremos, a televisão diante da sala de julgamento tem uma certa influência, mas acho que não é grande problema.

ConJur — E qual é o grande problema?
Luiz Périssé — A máquina judiciária tem grandes problemas. O Judiciário está sobrecarregado de casos para decidir, com o fenômeno de excesso de judicialização. Há, por exemplo, um número imenso de ações trabalhistas que é diferente do que acontece na maioria dos países com que nós temos algum grau de semelhança. Minha experiência pessoal, de quando comecei a advogar em meados de 1979, o Tribunal de Justiça de São Paulo tinha um funcionamento que era quase que cronometrado. O processo era distribuído rapidamente pelo desembargador e em poucos meses estava julgado. O relator tinha cerca de 80 dias para levar o processo para julgamento e podia haver embargos de declaração ou infringentes, mas no máximo em um semestre o processo estaria julgado.

ConJur — Há que se deve esse excesso de judicialização?
Luiz Périssé — A partir dos planos econômicos dos anos 1980, com o plano Cruzado, plano Bresser, plano Verão e plano Collor é que o sistema foi desarrumado. O influxo de fatores econômicos gerou muita instabilidade e refletiu na judicialização de muita coisa que não precisaria ser judicializada. A Constituição também criou novas frentes de acesso à Justiça ou de chamamento ao Judiciário. Me lembro das campanhas no sentido 'defenda seus direitos' — o que está certo, nós somos advogados mesmo para isso —, mas de repente se criou um fluxo de ações maior do que a máquina tinha capacidade para gerir e acompanhar. O Judiciário atual de São Paulo não é tão diferente dos anos 1980.

ConJur — Quais foram os resultados práticos disso?
Luiz Périssé — Tudo isso gerou uma crise nos anos 1990 e início da década de 2000, que resultou na Emenda Constitucional 45/2004. Ela criou o princípio da duração razoável do processo, porque realmente havia uma crise de paralisação pelo excesso de trabalho que os tribunais passaram a receber. Não estou criticando a legislação que abriu acesso a essas questões, mas, sim, dizendo que a máquina judiciária não está preparada para isso.

ConJur — A questão é de insegurança jurídica...
Luiz Périssé — Veja, o cliente pergunta quanto tempo vai demorar o caso dele e o advogado não sabe dizer. O cliente questiona sobre uma previsão e o advogado, novamente, não consegue dizer. Pode demorar dois anos, ou pode demorar 10 anos, depende das circunstâncias, de quem será o relator... Há setores que funcionam razoavelmente bem, há setores que funcionam muito mal. Já tive que reunir matérias de noticiário para apresentar para clientes estrangeiros para dizer: 'olha, o problema é esse aqui, não sou eu que não consigo fazer acontecer, mas é que a máquina está emperrada porque está entupida de casos'. Nesse sentido, o processo eletrônico é um fator que desafogou o sistema.

ConJur — Mas o peticionamento eletrônico é alvo de muitas críticas pela integração de sistemas.
Luiz Périssé — Sim, esse é outro problema. São sistemas diferentes e que não necessariamente conversam tão bem entre si. Não é que tenha que conversar obrigatoriamente, mas os operadores têm que atuar nos diversos sistemas diferenciados. Mas já há hoje softwares que permitem uma certa equalização, enfim, as coisas vão se arrumando e o processo eletrônico, sem dúvidas, foi um progresso. Ele acaba com boa parte do chamado 'tempo morto' do processo, em que fica no cartório à espera da costura ou da juntada. Ainda há problemas nisso aqui, com unidades judiciárias que são muito lentas no processamento, mas é uma questão de gestão. Há muita coisa a fazer no Judiciário, há deficiências, falta de pessoal, desestímulo para as carreiras funcionais, não digo dos juízes, mas quem atua nos cartórios ou nas secretarias.

ConJur — No quesito desestímulo na carreira, a advocacia está na contramão? Há um número muito grande de advogados no mercado.
Luiz Périssé — Há também cursos de Direito cada vez mais sobrecarregados e multiplicados. O Brasil é o campeão mundial de faculdades de Direito e temos que questionar por que é assim aqui. Por que há tanta atração em relação à atividade? Não é só a advocacia, muita gente hoje entra na Faculdade de Direito pensando numa carreira pública. O grande atrativo hoje é a carreira pública, falando do Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública que, de modo geral, remuneram bem e garantem um futuro razoavelmente seguro e tranquilo, coisa que não acontece com a advocacia militante, velha de guerra. O advogado tem que pensar na sua aposentadoria meio que por conta própria. Na Aasp temos aproximadamente 85 mil associados, então para nós são bem visíveis essas preocupações. Muita gente entra numa Faculdade de Direito pensando na carreira jurídica pública que lhe garanta essas vantagens, que, enfim, seria bom que todos pudessem ter também.

ConJur — O Estatuto da OAB tem sido seguido? A OAB tem cumprido seu papel?
Luiz Périssé — Basicamente, sim, mas o problema não é a lei, e sim a prática. Há problemas de prerrogativas e de desrespeito, que sempre tivemos. A Ordem do Advogados é quem cuida desse assunto como um dever institucional. A entidade faz 'caravanas de prerrogativas' para dar ao advogado, que às vezes está distante dos centros mais importantes, o alento da sua presença e dizer: 'olha, nós estamos aqui, você sabe que pode contar conosco'. Nós temos que defender prerrogativas por nossa causa, mas elas, no fundo, não nos pertencem, elas são das pessoas que nós representamos, aos nossos clientes. A prerrogativa é uma garantia da sociedade civil e temos que defendê-las principalmente pelo sistema jurídico como um todo. Na prática, sinto que há um desrespeito à função que o advogado está exercendo no andamento do processo. A AASP também colabora com a Ordem e defende as prerrogativas dos associados que nos procuram e trazem reclamações.

ConJur — O senhor concorda com o que diz o advogado Roberto Pasqualin, de que é mito dizer que a arbitragem e a mediação reduzem o mercado para a advocacia?
Luiz Périssé — Sim. Considero que a postura correta e inteligente do advogado deve ser: temos um problema aqui que tem que ser resolvido, qual é o melhor caminho para chegar à solução? Ele não deve ter medo da mediação, mas, sim, ver na mediação um caminho possível. O que não deve nunca ser aceito é que o advogado seja excluído desse processo de mediação, ele tem o direito de participar da mediação e deve ser visto como alguém que vai conduzir uma boa discussão negociável. O processo de mediação é um possível aliado e não deve ser visto como um adversário da atuação do advogado e da sua justa remuneração, não. Ele deve atuar e se fazer remunerar adequadamente no acordo em que passa para o seu cliente.

ConJur — O que a AASP tem feito para atender o advogado? Em que sentido facilita a vida do advogado?
Luiz Périssé — A AASP faz 75 anos neste ano, é um marco importante para nós. Estamos procurando realmente uma aproximação com os advogados e especialmente com advogados jovens, os advogados que estão chegando agora, ou até os que estão se preparando para chegar, estão estudando Direito. A AASP tem um bom canal de comunicação com seus associados e queremos que isso seja sempre maior, mais amplo e eficiente. Nós temos uma ouvidoria e um “front desk”, que recebemos muita correspondência e procuramos atuar em cada caso. Temos uma diretoria que tem de sete a nove membros dependendo da época, e contamos com 21 conselheiros.

A associação vive fundamentalmente para isso, tendo três linhas de atuação básicas: a primeira é a defesa das prerrogativas, sem as quais nós não conseguimos trabalhar; a segunda é a facilitação da atividade profissional, meios práticos de melhorar e tornar mais fácil e fluida a prática da advocacia; o terceiro pilar é o da educação, damos cursos de atualização constantemente, com um departamento cultural forte.

Temos um convênio com a USP, por exemplo, com um curso de especialização em processo civil. Há ainda instrumento de gerenciamento de processos eletrônicos a distância, que estamos aprimorando com novas funções. A ideia é que o advogado tenha no seu gerenciador de processos uma ferramenta de trabalho que o coloque em condições de competir no setor que hoje é altamente competitivo. Os advogados que não estão dentro de grandes estruturas também precisam ter acesso a ferramentas que lhes permitam atuar de igual para igual.

ConJur — Mas é possível manter uma advocacia solo?
Luiz Périssé — É. O advogado costuma ter um certo individualismo e muitos advogados se veem como um agente lutando contra alguma coisa. Mas a advocacia se faz melhor quando feita em conjunto, ou seja, não é preciso estar inserido numa grande organização. Pessoalmente, eu gosto de atuar em conjunto com colegas. Dificilmente vou participar de alguma audiência ou outra atividade sozinho, sempre vou com pessoas que deem suporte. Em especial a área contenciosa, que envolve confronto e conflito, é muito bom ter alguém do seu lado para ver o que você não viu, pensar naquilo que você não pensou e perceber aquilo que você, no embate do momento, não percebeu.

Fernanda Valente é repórter da revista Consultor Jurídico